Eu transaria com mortos
Conheço há mais de 20 anos essa pessoa que se apresenta como Vitor Menezes. Não gastamos esse tempo em viagens em grupo, não temos histórias de infância ou adolescência em conjunto para contar e sempre tivemos modos de pensar, agir e viver bem diferentes. Se a lógica funcionasse de verdade, talvez nem fôssemos amigos – o que só mostra que qualquer sistema lógico não passa de enredo de folhetim de quinta categoria.
O que, atesto e dou fé, nem de longe é o caso desse livro.
Além do tempo em que nos conhecemos, da mesma cidade natal e da mesma profissão, o que nos une e reforça esse laço de irmandade – sempre nos tratamos como irmãos, embora essa seja a primeira vez que um dos dois utilize esse termo – é a paixão pela Literatura. Porque ambos sabemos que a escrita se trata de salvação pela memória e não devoção cega. Aprendemos com nosso conterrâneo José Cândido de Carvalho a não sucumbir. E nada mais propício então que começar esse livro com a crônica “Oração para São José Cândido”. Rezam algumas teorias literárias que, para que uma narrativa cative a atenção irrestrita do leitor, deve começar com um fato ou imagem impactante, daquelas que fazem olhar para os lados, para verificar se alguém mais está presenciando aquilo. Vitor Menezes, como o escritor calculista que é, logo na primeira sentença dessa crônica – “Peço que, quando tudo me faltar, que eu não esqueça a literatura” –, exorta uma profissão de fé que atinge bem ali, ó, onde deveriam estar as convicções de qualquer ser humano.
Desgraçado metódico!
Mais um exemplo do sangue frio desse escritor: se lançar um livro de contos ou de crônicas parece ser algo arriscado, o que dizer de um que apresenta uma seleção de ambos? Pois digo o seguinte: Vitor Menezes não corre riscos e sabe até onde suas pernas alcançam – como bem mostra a crônica “Conversa ao pé da cova”. Ele não só dividiu “Eu transaria com mortos” em crônicas e contos, como colocou 20 para cada lado, pesados na balança da severidade que somente escritores refinados aprendem como desenvolver. Compenetrado em seu ofício como poucos hoje em dia, Vitor pegou o coração de vários textos de sua autoria, mediu-os, olhou por todos os ângulos e tão somente depois de convencer-se de que possuía algo que valia a pena aprisionar no papel, colocou esse material na balança. Esse livro registra o equilíbrio entre cronista e contista – ah, a tarefa de fantasiar o cotidiano, cotidianizar a fantasia; enfim, esses borogodós que a Literatura faz com a cabeça da gente – que dá forma a Vitor Menezes. São textos compostos ao longo de vários anos, mostrando o que eu, observador privilegiado desde sempre, já havia intuído: nenhum cotidiano está a salvo com ele.
E provo porquê com dois aperitivos apenas. A crônica que dá nome ao livro atesta o absurdo que pode se tornar uma prosaica reunião entre colegas de serviço, quando a linha tênue entre desabafo e fuleiragem é desdenhada. O horror, o horror, diria aquele lá, para logo ser defenestrado na frase seguinte, bem zecandidamente. E laivos de Cândido são ainda bem utilizados em “O infiel e o mulherengo”, com maestria, tributo e fanfarronice. Mas longe de ser taxado como “discípulo de JCC”, Vitor Menezes tem outro mapa da mina. Aferidos, pesados e avaliados, os contos e as crônicas desse livro podem então revelar que este escritor, meu irmão, construiu seu próprio Labirinto do Minotauro e deu certificação do Inmetro à medida do fio de Ariadne.
Jorge Rocha